O ciclone extratropical que atingiu o Rio Grande do Sul no mês de junho de 2023 gerou prejuízo milionário no setor agropecuário e o custo de recuperação dos municípios afetados deve passar de R$ 90 milhões, segundo cálculo inicial do governo do Estado do Rio Grande do Sul.
Os ventos e a chuva são os fenômenos mais lembrados quando retomamos os fatos. Mas há um outro fator muito relevante neste contexto: a interrupção e não reestabelecimento do fornecimento de energia elétrica em inúmeras propriedades e estabelecimentos comerciais. Mais de uma localidade no Rio Grande do Sul ficou por dias, até mais de um mês, sem o fornecimento de um dos serviços essenciais mais básicos para os parâmetros de vida contemporâneo. Não bastassem os transtornos causados pela falta de fornecimento de energia elétrica, afetando a rotina das pessoas que deixaram de trabalhar, acessar a internet, etc., muitos sofreram prejuízos materiais, seja pela danificação de eletrodomésticos ou pela perda de alimentos perecíveis, estes inutilizados, em função da longa falta de refrigeração que os preservasse aptos ao consumo.
Paralelamente a esse quadro, que na verdade não é tão inusitado assim, e tende a repetir-se, vige um enorme desconhecimento a respeito de uma série de direitos e deveres envolvidos em situações como essa. A primeira recomendação em geral é a de que o consumidor afetado entre em contato com a empresa de fornecimento e, caso a situação não seja solucionada, com o Procon da sua localidade. Ocorre que não raras vezes nenhuma alternativa consensual ao conflito resta frutífera, cabendo então a busca por eventuais danos materiais ou morais decorrentes da paralisação deste serviço público de caráter essencial.
É importante destacar que de acordo com a legislação brasileira e entendimento majoritário dos tribunais, a responsabilidade dos evolvidos na prestação do serviço de energia elétrica é objetiva. Ou seja, a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço pública (ex.: concessionária) responde pelos danos causados a terceiros, sendo suficiente a prova do nexo causal entre o ato praticado e o dano, é dizer, independente de culpa ou dolo. Logo, para a obtenção de indenização é preciso atestar não só a ocorrência do dano, como também e, sobretudo, que este é consequência direta da conduta da empresa prestadora de serviço público de energia elétrica.
A relação jurídica em questão é de consumo, com base no art. 14 do Código de Defesa do Consumidor. Segundo o artigo 14 “o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos”. Ainda, o inciso II do §3º desse artigo, aplicável na situação em análise, prevê que o fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar a culpa exclusiva do consumidor ou do terceiro. E, conforme §6º do art. 37 da Constituição Federal, “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Como regra geral a pessoa jurídica de Direito Privado concessionária de serviço público possui responsabilidade de realizar investimentos em obras e instalações, a fim de fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e contínuos. A devida manutenção das redes de energia elétrica é seu dever, em nome dos princípios da adequação, eficiência e segurança.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul julga a matéria em mais de uma de suas câmaras, indicando fundamentos para o reconhecimento do direito à indenização em um considerável números de casos e consolidando entendimentos importantes.
Por exemplo, o tribunal entende que quando a suspensão no fornecimento perdurar por tempo superior ao estabelecido em resolução da ANEEL, há falha na prestação do serviço e dano moral in re ipsa. Por ser um serviço essencial, a falta de energia elétrica atinge diretamente a dignidade do consumidor, que acaba impedido de atender necessidades básicas com alimentação, higiene e comunicação (TJ/RS. Apelação Cível, Nº 50001112320188210125, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Eduardo Richinitti, Julgado em: 31-08-2023).
Outro exemplo de entendimento formado pela Corte de Justiça Estadual se aplica a casos de ocorrência de tempestades com fortes ventos. Nesses casos, defende que até poderiam se enquadrar nos conceitos de caso fortuito ou de força maior sob a ótica de que constituem eventos climáticos estranhos à vontade da concessionária de energia elétrica, inapta a impedir sua ocorrência e suas consequências de forma integral (TJ/RS. Apelação Cível, Nº 50033961420218210159, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Cláudia Maria Hardt, Julgado em: 30-08-2023).
Contudo, essas consequências do evento climático - notadamente aquelas relacionadas com o serviço que presta, são da completa previsibilidade da concessionária ré, que tem o dever legal de, ao menos, minimizá-las.
Cada situação precisa ser analisada individualmente e na medida de sua especificidade. Em muitas delas é possível, inclusive, obter o ressarcimento por lucros cessantes, que são os ganhos que a pessoa deixa de auferir em razão de determinada situação, como é o caso da perda econômica pelo fato de não se poder usufruir do imóvel alugado pela falta de energia elétrica.
Para Fernanda D. L. Damacena, advogada especialista em Direito dos Desastres e sócia do Damacena e Nascimento Advogados Associados, “situações como as dos últimos ciclones que afetaram o Rio Grande do Sul vêm sendo antecipadas pela ciência há algum tempo. As decisões judiciais neste âmbito cada vez mais representam um passo em direção ao necessário processo de adaptação social frente a extremos”.
Ao refletir sobre os desastres, complementa que “talvez o maior avanço de todos neste contexto seja o reconhecimento da participação humana nestes eventos e sua previsibilidade. É importante que esta noção de desastre não natural se torne cada vez mais clara também no âmbito da administração pública e sociedade. Ações judiciais por perdas e danos decorrentes de desastres são cada vez mais tendência em decorrência da omissão ou ação deficiente por parte do poder público e mesmo de pessoas jurídicas de direito privado”.
O escritório Damacena e Nascimento Advogados Associados está à disposição para análise de seu caso.
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